Ultima palavra
Algumas palavras de uma família com filhos.
Curar e esquecer
Toda criança adotada sabe que foi abandonada pela mãe biológica. Isso é como um braço quebrado, com o tempo cura, mas não desaparece. Pode ficar mais forte do que antes, ou não. Vai depender de como for cuidado. Fique forte ou frágil, se você passar a mão lá, sentirá o calombo onde o osso quebrou. Não quer dizer que a criança não crescerá ou terá a mesma vida que outra que não quebrou o braço. Curar não é esquecer, mas pode ser suficiente.
Adoção não é um segredo, mas também não é medalha
Uma pergunta frequente é se devemos falar ou não para as pessoas que nossos filhos são adotados.
A decisão é sua e vai sempre depender da situação.
É preciso falar ao médico, que o histórico médico do seu filho não é o seu. Mas não é preciso falar para os vizinhos, afinal, você não conta tudo para eles, conta?
Em resumo, pense nas muitas coisas que acontecem numa família, você conta tudo? Não, às vezes por falta de oportunidade ou de motivo. Mas, se houver motivo, conte, não tenha vergonha disso.
Também não faça disso o orgulho de sua vida, algo que é o assunto de todos os dias, contado para cada pessoa que você encontra. Sua mãe contou como foi o seu parto para todo mundo? Espero que não. Então não precisa falar sobre a adoção de seu filho sempre. Fale sobre as notas dele e que agora sabe arrumar o quarto, ou que ainda não sabe, mas está aprendendo.
Pense em você, em quais são seus limites
Você precisa pensar em quais são seus limites. Você pode adotar irmãos? Tem dinheiro para isso? Há pessoas que podem ajudá-lo nessa tarefa? Avós, primos, vizinhos? Você tem saúde para correr atrás de uma criança aprendendo a andar? Sabe quanto custa a escola onde quer colocar seu futuro filho?
Essas são algumas questões que devem ser pensadas, mas há outras.
Para algumas pessoas, filhos são aqueles que carregam o mesmo sangue, que se parecem com os tios e avôs. Esses não deveriam adotar, porque nenhuma criança adotada será assim.
Outras pessoas não querem ter um filho que não seja da mesma cor que os pais, ou que tenha lembranças de uma família anterior. Novamente, pensem bem antes de adotar. Mesmo os bebês adotados têm uma história anterior, que eventualmente é lembrada numa consulta médica ou numa reunião de família. O passado não pode ser apagado.
Nem tudo é adoção
- Eu sei por que ela faz isso, é pra me testar. Crianças adotadas testam os pais, eu li isso. Crianças adotadas fazem birra só pra testar os pais.
Fizemos um pequeno silêncio. Então eu disse:
- Eu tenho dois filhos, biológicos. O menor é fácil, não dá trabalho. Mas o mais velho deve ser adotado porque faz muita birra
Rimos todos. A orientadora falou:
- Crianças fazem birra. Todas fazem, adotadas ou não. Algumas fazem muita birra e outras pouca. As adotadas também são crianças. Como todas, elas precisam crescer e vocês vão precisar ensinar muitas coisas, como se comportar na rua sem fazer escândalo. Adoção não é causa de birra. É comum pensarmos que tudo na criança se deve algum episódio que aconteceu relacionado a adoção. Gostos, comportamentos, traços de caráter, etc, como se a única coisa na vida dessas crianças fosse a adoção. São crianças, com gostos comportamentos e traços próprios.
- Então ela não está me testando?
- Ela está testando sim, porque é isso que crianças fazem. TODAS AS CRIANÇAS.
- E o que eu faço?
- O que toda mãe faz: vai educa-lo. Você precisa mostrar quem manda. Você sabe que quem manda é você, não sabe? Sabe??
Meu nome é Mariana, e o dele é Uelinton
- O menino que estamos adotando se chama Uelinton. Quando sair a documentação podemos mudar o nome dele?
- Mudar o nome? Bem, pode sim. Desculpe, seu nome é?
- Marisa.
- Mariana?
- Não, Marisa.
- Ah, você disse Mariana?
- NÃO, Marisa.
- Mas eu posso chamar você de Mariana?
- NÃO, MEU NOME É MARISA.
- E o dele é Uelinton.
- ...
- Sim, pela lei o nome da criança vai mudar quando concluir a adoção, pelo menos os sobrenomes. Quanto ao primeiro nome é uma decisão de vocês. Mas é preciso pensar bem. Ele pode gostar do próprio nome. Geralmente gostamos de nosso nome. É o nome que conhecemos como nosso por toda nossa vida. Tente conversar com ele sobre isso.
- Mas ele tem apenas seis anos, é muito pouco tempo.
- Eu acho que você tem seus nomes ao mesmo tempo.
- Como ? Eu tenho o meu há mais de trinta anos.
- Igual a você, ele tem esse nome a vida inteira dele. Pode não ser uma vida muito longa até aqui, nem ter sido sempre uma boa vida, mas é a vida dele e teve alguns bons momentos.
- Ele vai sentir saudade dessa vida?
- Dela toda não, mas de alguns momentos. Ele deve ter tido alguns amigos.
- E da mãe, ele pode sentir saudades dela?
- Eu não conheço a estória do Uelinton, mas as crianças sempre querem guardar boas lembranças de suas mães, todos nós queremos. Eu me lembro mais das coisas boas do que das ruins da minha mãe, e eu não fui adotada. Mas guardar essas lembranças não quer dizer que ele quer voltar para ela.
- Não?
- Não, ele apenas não quer dizer pra ele mesmo que a vida dele foi tão ruim assim. Ele teve alguns bons momentos, alguns amigos e a mãe dele foi amorosa, algumas vezes. E junto com todas essas lembranças vem o nome dele. Esse passado não pode ser apagado.
- Ele gosta do Neimar – diz o pai – talvez ele aceite ser Neimar.
Uma pequena pausa no grupo, e a mãe se manifesta.
- Vou mostrar pra ele a foto do Barbosa, Joaquim Barbosa. Uelinton até parece com ele!
Procure auxílio quando necessário
- Eu não sei mais o que fazer. O Fabinho tá atrasado nas matérias do colégio e eu não sei mais essas matérias. Eu tento ajudar mas nem entendo do que se trata. Aí ele olha pra mim com uma cara triste e eu choro. Ontem eu me escondi no quarto.
- E ele ?
- Na sala, tentando fazer o dever de casa.
- Por que você não chama uma professora para dar aulas pra ele.
- Eu sou a mãe dele, eu preciso ser capaz de cuidar disso. As outras mães não desistem assim.
- Desistem sim. – diz uma senhora sentada ao lado – Eu desisti com o meu menor. O maior não precisou. Fazia o dever e perguntava para a professora, não deu trabalho. Mas o menor …
- Mas você …
- Eu sou a mãe dele. Digo como cuidar da roupa e respeitar os mais velhos, principalmente eu e os professores. Ensinar? Tá doida? Tinha uma tal de matrizes, eu nem sei o que é aquilo. Não tinha no meu tempo. Eu “terceirizo” tudo: ensino, médico e até a psicóloga. Eu sou apenas a mãe. “APENAS” nada, porque dá um trabalho danado.
A orientadora sentiu que a mãe do Fabinho ainda estava um pouco indecisa.
- Você é a mãe, não precisa ser uma super-mãe. Pode pedir auxílio a outras pessoas e profissionais. Essa é a função das mães, fazerem o que for preciso, inclusive procurar ajuda.
- Mães e pais – corrigiu o marido, se sentido meio esquecido ao lado.
Amor e compromisso
Muita gente vai falar que adotar é uma questão de amor. Essas crianças precisam de amor, mas precisam mais ainda de compromisso. Afinal, elas estão lá porque alguém não pode cumprir o compromisso de cuidar delas.
Compromisso é cuidar delas mesmo quando as coisas não forem tão bem assim.
Compromisso é lembrar que nós somos os adultos e elas são as crianças, portanto, nós precisamos ter juízo, e elas aprenderem a ter juízo.
Compromisso é estar disponível todo dia, pelos próximos meses e anos. Mas tire um final de semana de férias de vez em quando, deixando as crianças com a avó, tios ou amigos.
Compromisso é não desistir, embora às vezes pense nisso.
Compromisso é sorrir quando tiram boas notas e ajudar quando as notas não são boas.